quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O sonho de mudar a própria história














Trajetória de uma mulher que luta diariamente para vencer os obstáculos da vida e do trabalho

O post abaixo é uma matéria que fiz no centro de Floripa com uma vendedora de jornais. Resolvi postá-la porque a personagem é um exemplo de vida e de superação humana. Leiam e tirem suas próprias conclusões.

O bronzeado do rosto não é resultado da exposição ao sol à beira da praia ou de uma sessão de bronzeamento artificial, mas de um longo dia de trabalho que começa às 4h da manhã quando ela sai de casa no Morro da Penitenciária entre barrancos e por meio de ruelas, no bairro da Agronômica. Comenta que um dia quase tropeçou em um “presunto numa vala”. Assim começa a jornada de mais uma trabalhadora em direção ao terminal de ônibus de Florianópolis para vender jornais pela manhã e bilhetes de loterias à tarde.

Ao fim do expediente do jornal, por volta do meio dia, dobra o uniforme, guarda em uma sacola, presta conta das vendas do dia, coloca o novo traje, retoca a maquiagem e inicia a atividade no outro emprego.
Esta é Maria Terezinha Nicácio Gonçalves, aos 52 anos, “a jornaleira”,como gosta de ser chamada, empregada há mais de dois anos em uma empresa jornalística da capital e vendedora de cupons lotéricos.

Mulher franzina, de altura mediana e muito vaidosa. Ela diz que mesmo acordando cedo, não dispensa uma sombra azul nos olhos. Um sinal escuro próximo da boca enrugada chama a atenção tanto quanto o batom cor de chocolate que cobre os lábios finos. Para disfarçar as marcas do tempo na pele maltratada pelo sol uma base escura sobre a face. Não esquece o par de brincos, arrumados com muito jeito por entre o boné institucional, os anéis baratos que enfeitam os dedos e as unhas caprichosamente pintadas de vermelho.
Muito sorridente, afirma que toda a produção é para ficar bonita, além de manter uma boa aparência para atender os clientes, há também muitos candidatos que querem preencher o coração dela.

Vida marcada pelo sofrimento
A trajetória de vida desta mulher, nascida no bairro da Vargem Pequena em Florianópolis, é marcada por dificuldades e tragédias. Aos nove anos, largou a escola para cuidar da saúde frágil da mãe que três anos depois veio a falecer. Nunca conheceu o pai. Órfã e muito jovem teve que procurar um trabalho para sobreviver. Mas os tempos de cuidados com a mãe fez nascer na pequena Maria o sonho de um dia ser enfermeira.
Com 18 anos casou pela primeira vez, mas não lembra quando e com que idade casou pela segunda. Teve quatro filhos desses dois relacionamentos. As lembranças destas uniões tiveram desfechos dolorosos e fazem Maria Terezinha disfarçar as lágrimas pelo rosto. É um dos poucos momentos que o olhar se fixa num ponto distante e o sorriso dá lugar a feições de amargura e dor. Apesar de ter ficado viúva dos dois primeiros casamentos, nada se compara a marca deixada pela terceira relação. Conta que era evangélica, casada com o pastor da igreja e moravam juntos na casa que pertencia a ele. Vivia feliz, até o dia que a filha mais velha pediu abrigo na residência que morava. Não teve opção, não podia abandoná-la com dois filhos pequenos. Esta decisão teve conseqüências que, por pouco, não a levou ao estado de depressão profunda. A filha e o marido começaram a manter um relacionamento íntimo e quando a desconfiança passou a ser uma certeza, Maria Terezinha sofreu um colapso nervoso e foi internada em um hospital psiquiátrico, até se recuperar. Os relatos saem com a voz embargada e o olhar distante. Tão distante que parecem divagações desconexas e incoerentes, como se ao ordenar as idéias, algo lhe faltasse.

O recomeço
Sem lugar para morar, foi abrigar-se na casa da filha caçula Adriana, casada e mãe de duas crianças pequenas. Com apoio de amigos e dos outros filhos, retomou mais uma vez o rumo da vida. Entretanto, são visíveis as sequelas deixadas por conta deste episódio. Muito mais do que a dor da traição foi o saldo físico deixado pelo parceiro. Ele era portador do vírus HIV e transmitiu a doença para Maria Terezinha. A revelação soa como lamento. Aos poucos, mais calma e serena, dá detalhes do dia da descoberta da doença, após um exame de sangue de rotina. Achou que ia morrer naquele instante. Mas a ajuda de profissionais da saúde com medicamentos e orientações, a fez recomeçar.
Apesar de todas as dificuldades, o sonho de retomar os estudos para se tornar enfermeira não foi deixado de lado. A intenção desta jornaleira é ingressar no curso de alfabetização para adultos, mantido pela prefeitura da Capital. Lembra que precisa levar alguns documentos para se inscrever, mas a requisição de um comprovante de residência a faz cair na gargalhada e entre risos, cochicha “a luz de casa é gato, como vou ter comprovante?”. E com otimismo prossegue “tudo na vida se dá um jeito e nestas situações basta pedir emprestada a conta de luz do mercadinho próximo de casa”.

A doença
A ausência foi notada nos últimos dias. Aquela mulher de sorriso fácil e boa de conversa não suportou a dor física e foi hospitalizada. Uma substituta foi colocada no lugar de Maria Terezinha para prosseguir com a venda dos jornais
Antonia Maria dos Santos e Rosângela da Silva, vendedoras do jornal concorrente e que partilham democraticamente o mesmo espaço, comentam que ultimamente Maria Terezinha queixava-se que vivia cansada e que as dores abdominais lhe atormentavam. As amigas acrescentam que a movimentação diária no terminal, com as pessoas indo e vindo, trocando sorrisos com ela, mesmo quem não a conhece, servia de anestésico e suplantava a dor. Dizia que era só um mioma, mas como já tinha enfrentado muitas coisas na vida, não era uma “dorzinha” qualquer que ia derrubá-la.

Hospital
Nos corredores gelados do hospital, o forte cheiro de álcool misturado ao aroma do café da tarde, confunde as narinas.
O quarto 506 A da ala feminina acomodava a jornaleira sonhadora e que mais uma vez não sucumbiu. O sorriso continuava lá, agora os cabelos negros e soltos estavam à mostra, o uniforme do jornal deu lugar à camisola branca que esconde o físico debilitado pela doença diagnosticada apenas como uma bactéria no intestino. Diagnóstico simples, diz ela, comparado ao mau que a acompanhará ao longo da vida. Entretanto, Maria confessa que a doença foi mais uma peça que a vida lhe pregou e tenta administrar o problema da melhor maneira. Promete que breve irá sair para se matricular na escola, pois o ambiente do hospital reavivou como nunca o sonho de ser enfermeira.

De volta à rotina
Mais um dia começa. Após a doença afastá-la por alguns dias do trabalho, lá está ela, no lugar de sempre, o rosto caprichosamente maquiado, sombras azuis e o mesmo batom cor chocolate delineando os lábios sorridentes. A face abatida e envelhecida pelos dias confinados em uma cama de hospital é disfarçada por uma camada grossa de base escura. Mesmos brincos, anéis, conversas e sempre disposta a interagir com os que passam. Não importa quantas dificuldades ainda irá surgir, ela tem certeza que é uma guerreira e está pronta para mais uma batalha. O que ela quer é ser notada, vender jornais e que os sonhos que nutre, sejam acalentados pelo desejo de uma vida melhor.

foto:Rodolfo Carreirão

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